sexta-feira, 5 de agosto de 2011

"O carinha do cursinho do Eduardo que disse..."

               Ele abriu os olhos ao que parecia ser mais um dia. Levantou, levou o pé direito ao chão, logo depois o esquerdo, como sempre. Mas ao ir na direção do banheiro, uma topada com o dedo mindinho o fez atinar para o fato de que talvez nesse dia não conseguiria manter sua rotina sistemática. Afinal, não estava em seus planos um pé dolorido num dia tão importante. Se lembrou de todo o esforço, trabalho e abnegação para finalmente chegar ao cargo de diretor do curso em que dava aula há anos, preparando jovens para serem pessoas melhores que ele próprio.
                Já pronto para sair, foi até a estante onde estava o esboço do discurso que havia preparado para o momento da "posse". Ao pegar os papéis, seus olhos foram direta e involuntariamente de encontro à um antigo livro que nem se lembrava que possuía. Mesmo sabendo que estava com o horário apertado (falta de pontualidade, em sua opinião, é o pior defeito de um profissional), e sem saber exatamente o por quê, pegou o livro e começou a folheá-lo. Sentiu que algo caiu de dentro do livro. Estava em seu pé, um pedaço de papel rosa dobrado. Naquele momento ele fechou os olhos, pedindo para que tudo fosse uma ilusão, mas a sensação das lembranças já haviam tomado conta do seu corpo e mente. Aquele papel, infeliz pedaço de papel, acabara de lembrá-lo que, sim, ele havia vivido um grande amor! Nesse momento se deu conta de que, na verdade, essa lembrança nunca havia saído de sua cabeça.
                Com consciência de que talvez fosse a maior burrice de sua vida, desligou os celulares, parou os relógios, afrouxou o nó da gravata e sentou-se, com o pequeno pedaço de "lembrança" rosa nas mãos e os olhos fixos. Sabia que um dia esse encontro com ele mesmo deveria acontecer, e decidiu que esse era o melhor momento pra isso.
                Com uma simples conta com os dedos, percebeu que faziam surpreendentes cinco anos que estava em posse desse bilhete e que nunca havia tido coragem de lê-lo. Sentiu raiva de si mesmo por isso.
                Fechou os olhos e instantaneamente vieram em sua mente sensações, lembranças, cheiros...
                Numa quarta-feira já no mês de Agosto, cinco anos antes, em um dia normal de aula, já cansado e torcendo pelo final de semana, passando a matéria mecânicamente, foi interrompido por uma menina. Aluna nova, no meio da semana, e do ano. Desconcentrou toda a turma ao entrar, pedindo licença, toda atrapalhada com livros, mochila, casacos. Ele, sério, pediu para que ela se sentasse para poder continuar.
                Ao longo da semana essa menina se mostrou muito interessada na matéria que ele lecionava, o que ele julgou estranho, apenas pelo fato de a aparência dela ser um tanto despojada. "Tem cara de péssima aluna", pensou.
                Dias depois, em um debate levantado por ele sobre o Movimento Hippie ela se manifestou, situação que já era normal (ela falava bastante) se da boca dela não tivesse saído a frase "Deixa de ser careta, professor!". Foi só nesse instante que ele olhou pra ela sem nenhuma barreira. Ela quebrou toda sua guarda. E aí sim, reparou que a menina possuía os olhos mais expressivos que ele já viu.
                Sem graça dispensou os alunos e deu por terminada a aula. Sozinho na sala, a frase, a voz, os olhos, martelavam na cabeça dele em tal volume, que ele nem percebeu quando ela entrou. Foi pedir desculpas se causou algum constrangimento e convidá-lo para tomar um mate. Precisou de certo esforço, mas conseguiu convencê-lo.
                Ironicamente uma menina com vinte anos menos que ele, em uma noite apresentou um mundo totalmente desconhecido para esse experiente professor. A impotência se confundiu com o fascínio. E pela primeira vez ele se sentiu jovem! Quase sem se dar conta, passou dias na casa dela. Participou de reuniões de organizações políticas de juventude, ensaios de teatro alternativo, encontros com exagerado consumo de cannabis, e não foi trabalhar.
                Em uma das noites acordou sozinho e silenciosamente começou a observar ao seu redor. Um quarto com muitas fotos, tapetes e panos coloridos. Uma cama de lençóis pretos de bolinha branca e um cobertor vermelho. Ao seu lado, ela. Deitada de bruços, com os cabelos longos e escuros repousados sobre as costas nuas. Um corpo em perfeita harmonia com a meia luz. Sem se conter acaricia seu rosto, o que a faz abrir seus lindos olhos, que se encontraram com os dele. Nesse instante um sorriso surge nas duas bocas. E como se já não tivesse tudo perfeito, ela diz sussurrando: "eu te amo.". Um quente subiu pelo seu corpo e ele constatou rapidamente que ele também... ele amava!
                No décimo segundo dia de pura euforia um telefonema do seu chefe o desperta para a realidade. Imediatamente ele se questiona o valor de tudo o que havia conquistado, ponderando se valia a pena jogar tudo fora por uma "aventura". Rapidamente se levanta a fim de retomar sua vida normal, mas é impedido por ela. Inicia-se uma discussão, em que decepção e angústia são os sentimentos dela, e medo e insegurança os dele. Ao final decidiu que não podia abandonar toda uma vida, para se iniciar outra sem nenhuma garantia de felicidade e estabilidade. Parte sem olhar pra trás...
                Dois meses depois, ao ter voltado à sua rotina e enganar a si mesmo que não pensava mais nela, encontra em sua pasta um papel rosa dobrado. Pelo cheiro exalado ele teve a certeza de ser dela, e resolveu não abrir. Foi o último "contato" que tiveram.
                Seus olhos de abrem novamente, e suas mãos rapidamente desdobram o papel, antes que o pensamento covarde o impeça. Lê as seguintes palavras:
"Que parte do 'eu te amo' você não entendeu?"
                Sem que ele consiga impedir, lágrimas escorreram pelo seu rosto, e mais uma vez ele se sentiu jovem. Agora sabe que, por medo, trocou felicidade por estabilidade e está sem os dois.
                Mas não se culpa por isso. Sabe que nunca é tarde pra recomeçar!

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